top of page
O Pássaro Profeta
Sentada ao piano ela permanecia imóvel, os braços pendentes, fitando a partitura, mas seus olhos se perdiam numa floresta envolta em neblina, onde as folhas úmidas de escuras árvores pautavam o silêncio. Pela manhã, no consultório, o médico fora claro, sem meias palavras: “infelizmente o diagnóstico está confirmado”. Pousando as mãos nos exames espalhados na mesa, tamborilou sobre eles e continuou com alguma reticência: “está um tanto avançado, não recomendo cirurgia, mas a quimioterapia poderá ser eficiente. Nós vamos superar isto, certo?” Ela percebeu a contratura nos lábios do médico e soube de imediato que não. Encolheu os braços, sentiu-se invadida por um frio imenso. Olhou o marido ao seu lado que, perplexo, nada conseguiu dizer. De novo a voz do médico. “Vou encaminhar você para um oncologista de minha confiança”.
Dó sustenido ré sol si bemol. Lento, dolcissimo. A partitura agora lhe transmitia inexplicável estranheza. No taxi, de volta para casa, o marido, pegando-lhe as mãos, murmurara uma frase incompreensível e calara-se. Estavam ambos sós. E sós e mudos entraram pouco depois no apartamento cuja ampla sala permanecia na penumbra. Ela foi às janelas e, com certa impaciência, fez subir as persianas. Ele seguiu para o quarto.
Não se dispunha a levar as mãos ao teclado, seus olhos vagavam entre o metrônomo e o pequeno busto postos sobre o tampo. O relógio oitavado soou uma vez. Uma e meia, já? Depois da consulta o tempo se estilhaçara em sua mente e os fragmentos não se ordenavam. Encontrara o marido no quarto sentado na beira da cama, cabisbaixo. Quando entrou, ele ergueu-se rapidamente, abraçou-a e voltou a murmurar, agora pretendendo ser firme: “nós vamos superar isto, sim, nós vamos, tenho certeza.”
“Não tenha”, disse ela e, desfazendo-se com delicadeza do abraço, sentou-se na poltrona que ladeava a mesinha com porta-retratos. “Você não tem que ir ao escritório?” E, antes que ele respondesse, continuou. “Vá, marque o oncologista, volte cedo, vamos jantar fora. Quero ficar sozinha um pouco.” Ele espantou-se: “Mas eu não vou deixar você aqui sozinha”. Ela sorriu. “Leve a receita e compre mais analgésico. É a receita azul”.
Na base da estatueta uma plaquinha dourada: Beethoven – 1770-1827. Não chegarei também aos sessenta. Será possível isso? Agulhas perfurando meus braços, pessoas me dizendo para ter fé, meus cabelos cairão, por onde andará minha irmã? E ele? Tão assustado! Talvez ainda me ame. E eu, o que sinto? Por que estou tão só ao lado dele? Voltou a fitar a partitura. Buscou recapturar seus passos pelo apartamento. Viu-se na cozinha, a torneira da pia aberta, a água girando pelo ralo. Lembrou-se do pai, tentando explicar-lhe o efeito Coriolis – ela teria uns doze anos e não entendeu, mas sentiu-se rodopiando no Danúbio Azul. Engenheiro, ele. Olhos azuis, os meus não. Não se dava bem com mamãe. Morreu de câncer, também... talvez quisesse dizer que me amava, mas nunca soube.
Estava agora no quarto. Olhava os porta-retratos. Aqui eu teria uns dezesseis, não lembro, de mãos dadas com ele, magrinho. Gostava do seu sorriso ingênuo... casamos muito cedo. O que será amar? Amar profundamente? Por que acho sempre que não sabem dizer que me amam? Eu também não sei dizer. Como tudo é amargo, como somos sós. Tomara nas mãos um deles, pequeno, com uma foto oval. Vovó. Os que se foram perduram em sépia. Ela sim era pianista. O piano dela. Pleyel. Eu não fui adiante. Em quase nada. Mas os alunos gostavam de mim. Não tivemos filhos... o legado da nossa miséria. Machado também não teve. Como será sentir aqui por dentro um novo ser crescendo? Apertava o ventre e percebeu então a dor intensa, atravessando até o dorso. Sentou-se na poltrona e, inclinando o tronco, deixou pender a cabeça. Fechou os olhos, perdendo a noção do tempo. Só o que havia era a dor pairando na escuridão. Por que isso? Deus, como é possível isso?
E então estava de pé, evitando olhar para o espelho acima da cômoda, a procurar numa das gavetas a caixa do analgésico. Colocou um comprimido sob a língua. Muito lentamente voltou os olhos para sua imagem. Olheiras, rugas, como perdi peso, os cabelos... Lindos, mamãe dizia. Gostava de fazer tranças. Nada, nada, como estou aqui? Como aconteceu? Jantar fora... que absurdo dizer isso. Não quero ver ninguém... como preciso que me abracem... mãe... morreu há dois anos, já. Quem irá ao meu... coroas de flores, os colegas professores da faculdade... ela era muito nova, cinquenta e nove, estava aposentada há três anos. O comprimido se desfez... é pecado morder a hóstia. Mamãe era católica... de que vale... medo, somente. Réquiem, Verdi, creio num deus cruel, não creio, tudo é burla...
O tempo amarelara levemente as teclas brancas. Ela esboçou um gesto como se fosse, agora sim, levar as mãos ao teclado, mas voltou a deixar os braços caídos. Seu olhar retornou à partitura e o pensamento aos estilhaços do tempo. Entrara há pouco na saleta onde ficava o piano, ao lado da janela. À esquerda a estante, à direita o buffet antigo, acima dele o relógio oitavado. Aproximou-se da estante: romances, livros de arte, nostalgia. A dor estava mais suportável. Numa pequena pilha de partituras, procurou e separou uma delas. Talvez não saiba mais tocá-la. A vida é o que vai acontecendo e quase nunca é o que gostaríamos que acontecesse... quase sem dor... por quanto tempo... será que ele vai demorar... e se fosse o contrário? Eu sem ele, como seria? Mas é tão comum ficarmos longe um do outro quando estamos juntos. Apenas nas lembranças ficamos mais perto... é assim com todos... e todos seremos esquecidos...
Estava agora no centro da saleta e hesitava em aproximar-se do piano. Baixou a cabeça e viu seus pés descalços sobre os ornamentos orientais do tapete. Vestira seu velho roupão branco e nem se lembrava. Ao erguer a cabeça, viu a janela emoldurando um céu esplendidamente azul. Foi tomada por um choro incontrolável e a partitura caiu de suas mãos.
O que virá? Ficarei apenas assim, exposta, nua, rasgada por essa dor dilacerante, por esse medo insuportável de não estar mais aqui... ser apenas uma dolorosa lembrança, nem isso... todos se vão. Nada fica. Paixões, acertos, erros, beijos, desventuras, desejos, nossas peles se roçando, nossos corpos, nossas almas... feitas de ilusão. Nada nos pertence, as cores, os sons, as vidas que nos cercam, o mistério do mundo, nada...
Buscou-a no chão, caminhou até o piano, abriu-o, colocou-a sobre o apoio e por fim sentou-se. Não mais chorava. Permanecia imóvel, os braços pendentes, fitando a partitura, mas seus olhos se perdiam numa floresta envolta em neblina.
E no silêncio da floresta pôs-se a caminhar. Uma claridade tênue ia dissipando a neblina; os troncos aos poucos tomavam formas humanas e, quando por fim o sol se tornou pleno, ela se viu em meio a inúmeras pessoas que, em direções diversas, também seguiam. Algumas riam, outras choravam; umas olhavam-na com desdém, outras acenavam e a maioria nem se dava conta de que ela passava. O dia era claro. Dó sustenido ré sol si bemol. Levou as mãos ao teclado e começou, então, a tocar. Longe, no azul do céu emoldurado pela janela, um pássaro bailava delicadamente.
bottom of page
